Infância feliz e as tragédias paulistanas
Hoje é segunda e faz quase dois dias que Davi Santos de Souza foi brutalmente atropelado, teve seu braço amputado e quase morreu na avenida Paulista enquanto pedalava para o trabalho. O motorista do carro, Alex Siwek, não parou para prestar socorro, deixou o amigo que estava junto em casa e depois se dirigiu ao córrego da avenida Ricardo Jafet para jogar fora o braço de David que ficou preso no carro. Não tenho nenhuma informação nova a acrescentar a tudo que já foi dito e ouvido. Apenas um desabafo.
A história, que parece ter saído de um filme de terror, poderia ter acontecido com qualquer um. São Paulo não é mais uma cidade. Deixou de ser há muitos anos. Como disse o Leonardo Sakamoto, em um post em seu blog, São Paulo é a não cidade.
No domingo, dia do crime, eu fiquei offline o dia inteiro porque estava em um curso. Quando saí do curso no fim do dia e acessei a internet me deparei com a história que custava a acreditar.
Muita coisa me passou pela cabeça. Tristeza, raiva, ódio. Quando encontrei minha esposa, não saia da minha cabeça o pensamento se é essa cidade que eu quero que minha família more e cresça. Minha esposa e eu temos conversado muito em ter filhos. Eu olho para a janela de casa e penso que não quero que ele more aqui.
Nasci e fui criado em São Paulo, em um apartamento em Santana, Zona Norte da cidade. Dos 3 aos 28 morei no mesmo lugar com dois breves hiatos. Minha vida e meus principais amigos estavam naquele prédio. Lá eu jogava bola, nadava, andava de bicicleta e me divertia. Cercado por grades e segurança, vivia em uma bolha. Lembro que quando eu passeava de carro com meus pais e passávamos pela avenida Paulista, sempre ficava maravilhado com as luzes, o movimento, as pessoas. Era uma outra cidade para mim.
Lembro que até meus 12 anos, minha mãe não me deixava sair do prédio sozinho para brincar na rua, nem para andar de bicicleta, pois era muito perigoso por causa dos carros. Em algumas oportunidades eu não obedecia e saia para andar de bicicleta com os amigos do prédio. Gostava de andar no fim da rua, mais tranquilo e com algumas lombadas para saltar.
Ainda com 12 anos, circunstâncias da vida nos levaram para Laranjal Paulista, pequena cidade próxima de Piracicaba e Tatuí, onde tínhamos familiares. Não gostava de lá, pois sempre que ficava na casa da minha tia nunca tinha nada para fazer, eu não tinha amigos, não tinha quadra de futebol, não tinha piscina, não tinha nada, só a rua.
Nessa cidade que eu não gostava quando cheguei, descobri o sentido da palavra liberdade. Não tinha os “benefícios” do prédio, mas tinha a rua, que antigamente era ponto de encontro das pessoas, onde tudo acontecia, como disse o amigo Daniel Guth.
Pela primeira vez na vida, tinha permissão da minha mãe para andar de bicicleta na rua. E como era bom! Eu ia à padaria, à escola, para todo canto pedalando. Lembro do primeiro passeio em grupo que fiz e como gostei tanto que não queria parar.
Laranjal Paulista fica em um vale e possui muitas ladeiras. Além disso, apesar de ter uma população pequena e muito simples (15 mil habitantes) era grande geograficamente e possuía três distritos: Maristela, Pereiras e Abóboras (nunca soube se era esse mesmo o nome do distrito). Nenhum deles era difícil para mim, pois de bicicleta eu ia a qualquer lugar. Um amigo dessa época, Adams, me acompanhava em quase todos os rolês.
Lembro que todo sábado tinha jogo em um campo no bairro das Abóboras, que ficava há 12 quilômetros do centro. Para chegar lá era preciso pegar uma vicinal (estrada pequena de mão dupla, sem acostamento, muito comum em pequenas cidades). Adams e eu pedalamos até lá, jogávamos 90 minutos e voltávamos pedalando, não importava o tempo. Na volta, tínhamos a oportunidade de parar em um riacho para refrescar.
Também em Laranjal Paulista, tive meu primeiro emprego registrado, já com 14 anos, office-boy de um escritório de contabilidade. Na verdade um bike-boy muito antes de saber que isso era conhecido como bike courrier ou bike messenger no exterior. Eu percorria a cidade pedalando com uma pasta que eu equilibrava no guidão entre os dois polegares entregando e retirando documentos. Quase não usava cadeado nos lugares que parava e não me lembro de ter capacete.
A bicicleta era meu meio de transporte, de lazer, minha vida. Tudo que eu não experimentei em São Paulo, em três anos morando em Laranjal eu vivi. Jogava bola na rua, encontrava os amigos da escola nas festas de São João, jogava bola, ia à igreja. Vivia uma vida plena para um garoto de 14 anos.
Hoje, com 30 anos, casado, e pensando em aumentar a família, digo que não gostaria que meu filho crescesse em São Paulo e fosse privado da infância livre que tive. Me peguei chorando durante o dia toda vez que era perguntado sobre o acidente. Pensava na minha esposa, na minha família e como eu poderia ser o próximo e virar mais um número na estatística da CET.
A revolta e a raiva aumentam quando ouço que o advogado do criminoso em entrevista diz que é preciso levar em consideração que o ciclista estava na pista da esquerda quando a ciclofaixa ainda não funcionava. Ou comentários de pessoas que dizem que São Paulo não é para ciclistas e que precisamos ter cuidado, como disse o Willian Cruz.
Me pego pensando se desisto dessa cidade cinza e que as pessoas insistem em matar dia após dia ou se fico e luto para ajudar a torná-la mais humana e habitável, onde as pessoas são respeitadas independente do meio de transporte que tenham optado usar. Onde os filhos que terei possam brincar sem medo. Onde famílias cresçam em paz.
Uma vida sem medo e com mais de Laranjal Paulista nos bairros de São Paulo.
Fonte:BikePedaleCia
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